quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

3 reias de Dom Quixote


Eu fiz os meus próprios sacrifícios.

Hoje cedo contei a meus irmãos que pra seguir a modéstia da família fui pelo segundo caminho que eu mais gostava profissionalmente. Ainda que de acordo, há uma dúvida que me sangra lentamente por dentro, me questionando com tamanho desespero gradual passando pelos dias, me empurrando contra a parede, me dizendo pra decidir se volto duas casas e abdico de me graduar, e ir aos palcos, como quis com igual intensidade antes. É, eu coloquei a minha satisfação pessoal em segundo plano.

Meu irmão gêmeo e minha irmã mais velha arrastaram os olhos e a cabeça de um lado pro outro quase que me condenando à perpétua falando pela moral e os bons costumes, esquecendo que eu sou velho demais pra receber ordens da família. Como se fosse possível me sentar e colocar de castigo. Eles são tradicionais demais, eu uma mistura de Dom Quixote de La Mancha e vadia dos anos 90.

Não me condeno, não mesmo. Me questiono apenas, se seria possível ser melhor do que esta forma triste e peçonhenta de alguns dias, o contraste entre o sábio e o poeta, do lirismo a arrogância intelectual.

Tá aí uma coisa que não entra de jeito nenhum na cabeça das pessoas, que eu não sou nem uma coisa, nem outra. Eu mesmo não me cerco de limites, ainda que eu admita que existem limites em mim mesmo, como eu já expliquei antes. Não estou reclamando, nem desanimado, só não me conformo com este dia, como se a culpa fosse do dia, e não minha.

Eu vivo dessas paisagens, sabe, pra não enlouquecer. É o lado bom da minha profissão, eu posso viajar sempre. Se fosse diferente disso, um dia iam abrir a porta do meu quarto e eu ia estar arranhando as paredes com as unhas e os dentes. Controlado agora, cheio de pudor, bom senso, e umas gotinhas mágicas pra ansiedade que a minha terapeuta receitou.

Fazendo a família de refém da minha sandice com um bocado de comédia, fazendo da minha própria existência limitada a sátira do dia-a-dia. Você me pergunta se eu sou hedonista, mas a resposta depende mais do seu juízo de valor. Nem poderia responder isso a alguém que não corre riscos, que prefere engolir do que expulsar os desejos, satisfazendo.

Esses são meus 5 minutinhos de loucura, instável emocionalmente, mas ponderado pra não me distanciar do real. Eu nem sei exatamente o que está me incomodando, é quase uma frustraçãozinha pra não deixar a vida acomodada, porque eu achei que quando estivéssemos juntos na montanha o beijo sairia natural. Não saiu. Pois é, eu vivi muito planejado. Juro que eu tentei recalcar o desejo, deixa-lo no inconsciente. É como um orgulho do passado, um presente pra você.

E as coisas acabaram assim, tudo tão normalzinho que eu até estranhei. Foram oito dias, dois Dom Quixote pelas estradas, praias compactuando com aquilo que você insistiu em dizer que estava ficando sério, acresce que ninguém tinha combinado compromisso. E um desfecho romântico pra essa história? Que pra cruzar a fronteira foram apenas três reais. Mas não se preocupe que eu não tardo. Eu nunca tardo. E das consequências pode deixar que eu mesmo cuido.

Mas nós somos melhores amigos, certo?

No chão.

Escarrado, gozado.

O chão é o limite do mundo, o máximo das ocasiões, a cama urgente ou aonde morrem todas as coisas.

Ontem à tarde estávamos sentados junto à mesa e agora estou caído no chão enquanto você atravessa a porta dizendo que não dá mais. Empurrou-me no chão pra fazer amor e saiu de fininho, como se quisesse lançar sobre mim uma culpa pela sua ausência. Não me matou, claro, mas resolveu se matar, anulando-se.

Que ninguém se engane com a minha posição inferior, estou caído mas quero mais luta. Não sou um homem acabado. Sou toda essa loucura sendo engolida pelas plantas carnívoras que nascem pelas frestas do taco e rasgam minha carne com uma fome delirante pra, depois, ocuparem todo o quarto numa exuberante savana que te espreita, em silêncio, caminhar pra fora do quarto com medo de amar e de se foder, uma psicologia tão econômica que se assemelha ao pensamento de uma boa senhora que não sai do condomínio fechado porque “a vida está muito perigosa”.

Toda sua lógica peca pela simples razão de estar vivo. Sua lógica foi criada para os mortos. Eu estou vivo, sou uma planta de raiz profunda.

E no meio dos seus passos calculados você tropeçou e assoprou um “eu te amo” quase entalado.

Eu respondi que te amo mais.

Então você virou a cara para o lado pra não ver um elefante no meio da kitnet.