terça-feira, 4 de novembro de 2025

Maldita seja

Não tomo água da torneira. Detesto. Não tomo. Acho anti-higiênico, acho o gosto ruim, um horror, não tomo. Pode argumentar que a água vem tratada, que é de poço, que é própria pra consumo, não tomo. Poderia ser das torneiras do Canadá, não tomaria. Acho que muito disso tem a ver com o fato de eu ter feito trabalho de campo em área rural por muitos anos, onde faltava infraestrutura e saneamento básico, mas sobrava generosidade dos agricultores, que sempre me enchiam a garrafa para que não desfalecesse num calor detestável do verão amazônico. Detestável igual à água de torneira. Mas o café era bom. Ah... o café era sempre saboroso e acalmava um pouco da fome que vinha cobrar o preço da caminhada a cada par de horas.

Gosto de água tratada. Sabidamente tratada. Isso se dá pelo fato de que fui criado por dona Sônia, que é paranóica com saúde e higiene, e vice-versa. Paranóica de dar nos nervos. Quando criança, me incomodava muito ter que ficar lavando as mãos e tomando água onde chegasse. Me obrigava sempre que chegávamos a qualquer ambiente: "lava as mãos e toma água. E pega pra mim." Não entendia a lógica ritualística, mas hoje sei que a pobre só estava preocupada em me manter hidratado no calor de Belém e com as mãos limpas para não levar germes à boca. Deus sabe que crianças levam as mãos à boca toda hora, sem sequer calcular o ato. E para minha mãe, que tinha abundância de cuidado e escassez de grana, era uma forma de me deixar saudável, ou pelo menos evitar alguma doença onerosa e desnecessária. Hoje fico imaginando sua aflição, cuidando de dois, sem recursos e paranóica.

Mantive o hábito saudável. Onde chego, tomo água e lavo as mãos, às vezes lavo várias vezes sem sequer trocar de ambiente. Não me incomoda mais — gosto. Talvez por isso um dos imperativos para morarmos juntos foi ter trazido meu garrafão apertado entre tuas pernas no carro e a recomendação para que não me permitisse cair. E esta bomba, hein? Uma de nossas primeiras aquisições de nossa junção em tua casa. Achei que essa bomba não iria durar, sabia? Das outras vezes que comprei, essa bomba de sucção não durou nada. E descarregava muito rápido, me provocava ódio. Quando menos se espera, espera-se tirar água do garrafão — após lavar as mãos — e a inútil, novamente descarregada. Outro dia, em Santo Amaro, no meio das compras das bugigangas, fixei outros modelos de bombas de sucção para garrafão de água. Me fascinei pela aparência e pela usabilidade delas. Cismei que era necessário ter mais de uma para quando a outra descarregasse.

Não deu tempo. A nossa bomba só descarregou uma vez, e ela estendeu-se mais do que a nossa convivência. Que explodiu, e tem explodido sempre. E eu explodi por tu beberes água da torneira, e tu explodiste porque, pra ti, é frescura tomar água mineral. E nós explodimos por tantos outros motivos. Implodimos. E não foi possível higienizar a relação, não foi possível tratá-la. Jogamos no ralo todo o resto do que poderia ter sido cuidado, para não nos adoecer. Definitivamente, não deu tempo sequer de a bomba pifar e ser necessário comprar outra. Malditas sejam todas as bombas de água.

Sabia?

Sabe que eu tento me comunicar de maneira submissa e superprotetora com você? E que eu calculo todas as minhas palavras e tomo cuidado pra ser gentil e doce para não correr o risco de vc interpretar errado e ficar frustrado? Eu sinto muita culpa e preciso sempre tá me policiando, vigiando e exigindo pra te proteger de frustração. Assim eu evito receber críticas e punições que as vezes me levam acreditar que eu sou merecedor. Eu me sinto ansioso e sobrecarregado no meu dia a dia. 

Sabe a última vez que eu me senti dessa forma hipervigilante enquanto eu convivia e me comunicava com alguém? Com o meu pai.