Eu sei distinguir todos os tipos de Malbec que tu usava. O tradicional, o Gold, o Magnetic, o Noir.
Não é que o cheiro me siga —
é que eu ainda reconheço o que um dia foi casa.
E, queira ou não,
casa foi o que a gente foi um pro outro.
Tu lembra da tapioca com queijo que fazia pra mim?
Do cuscuz com manteiga demais,
que tu dizia que era pra eu “parar de frescura”?
Eu lembro.
Lembro do som da tua risada na cozinha,
da cerveja escondida na varanda,
da primeira vez que a gente fumou um back
e achou que o mundo inteiro era pequeno demais
pra caber o que a gente sentia.
Porque sim —
a gente sentia.
Mesmo fingindo que não.
Tinha um peso no ar, um desejo quieto,
um toque suspenso entre a amizade e o que nunca teve nome.
Tu sabia.
Eu também.
E todas as vezes que tu caiu,
eu tava lá.
Quando tu bateu na minha porta de madrugada,
tremendo, chorando, sem saber o que fazer —
fui eu quem abriu.
Quando tu perdeu o rumo,
quando tu ficou desequilibrado,
quando o mundo te virou as costas —
fui eu quem ficou.
Mesmo quando ela já sabia de tudo,
quem tava lá era eu.
Tu esqueceu disso, né?
Ou fingiu que esqueceu.
Fui eu quem te empurrou pra ela.
Fui eu quem disse que vocês combinavam.
Eu, com essa mania de achar bonito o amor dos outros,
mesmo quando ele me arranca em silêncio.
E quando vocês se assumiram,
eu desapareci.
De repente, o “nós” que existia
virou “vocês”.
A tua risada ganhou outro eco,
o teu cheiro outro corpo,
o teu mundo outro endereço.
Agora vocês moram juntos,
fazem planos,
dividem a vida que um dia tu dividiu comigo.
E eu fico aqui, tentando convencer a mim mesmo
de que tudo bem.
De que foi melhor assim.
De que eu não sinto mais nada —
embora o corpo desminta cada tentativa.
Mas às vezes,
basta o vento trazer o cheiro da droga do Malbec —
qualquer um deles —
pra eu lembrar que, no fundo,
tu ainda mora em mim.
Eu só acho muito injusto
que a gente tenha terminado assim.
Eu só acho muito injusto
que a gente tenha que fingir que o outro não existe.
Eu não me conformo com o cheiro desse perfume.
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